10/10/2019
Projeto de lei acirra disputa entre locadoras e concessionárias
Deputados avaliam regras da venda direta, que representa 49% dos negócios
Um projeto de lei, em discussão na Câmara dos Deputados, que questiona a venda direta de veículos, trouxe à tona uma conflituosa e antiga relação que envolve montadoras, concessionários e locadoras. Desta vez, no entanto, a polêmica em torno do canal, por meio do qual a indústria automobilística escoou 49% das vendas em setembro, não envolve só a histórica briga entre as partes envolvidas. Expõe também uma mudança de hábitos de consumo e de uso dos carros.
A compra direta na montadora prevê descontos de 30% a 35%, além de isenção do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O que há anos incomoda os concessionários é perceber que as locadoras, maiores clientes desse tipo de compra, conseguem, graças aos abatimentos, revender carros com pouco tempo de uso a preços muito inferiores do que as revendas tradicionais. O projeto de lei 3.844, do deputado Mário Heringer (PDT-MG), estabelece que a venda sem tributação só poderia acontecer depois de 24 meses.
Os fabricantes de veículos não parecem dispostos a abrir mão do modelo que hoje sustenta a maior parte da demanda de veículos novos no país. E indicam as mudanças de hábitos de transporte como um dos principais motivos para manter o sistema.
“A exemplo de outros mercados mais avançados, o novo modelo de negócios no Brasil aponta para uma tendência de aumento da participação das vendas diretas, tanto para atender frotistas, gestores de frotas e locadoras, como para empresas que representam as novas opções de mobilidade pay-per-use”, disse, ontem, por meio de nota, o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes.
O dirigente refere-se ao aumento do interesse do consumidor pelos serviços de transporte terceirizados, que funcionam, principalmente, por meio de aplicativos como Uber. Com menos consumidores interessados em ter seu próprio carro, o mercado do varejo começou a encolher ao mesmo tempo em que o de vendas diretas cresce a cada mês. Há quatro anos, esse canal absorvia 28% das vendas. No ano passado ficou em 42%. Em agosto estava em 46% e em setembro passou para 49%.
Ao Valor, o deputado Mário Heringer afirmou que o texto tem como objetivo acabar com os “privilégios de algumas categorias”. Ele afirmou ser contrário à renúncia fiscal que beneficia as locadoras, por exemplo. “Não podemos abrir mão de qualquer arrecadação.Temos que acabar com a renúncia fiscal”. Para defender a análise de seu projeto, ele citou a reforma tributária e a eventual criação da CPMF, que já foi descartada por integrantes da equipe econômica em mais de uma oportunidade. “Melhor acabar com renúncia fiscal do que criar e cobrar CPMF”, disse.
As locadoras dizem que costumam vender os veículos com 15 a 18 meses de uso. Mas há, segundo fontes do mercado, casos em que o veículo é colocado à venda com menos de um ano. O setor alega que não recolhe ICMS sobre essa operação por tratar-se de “desmobilização de um ativo”.
O presidente da Associação Brasileira de Locadoras de automóveis (Abla), Paulo Miguel, afirma que a venda de carros não é a atividade principal das locadoras, e sim a desmobilização de ativo usado para a prestação de um serviço. “E sobre essa operação não há incidência de ICMS, como previsto em diversas decisões judiciais”, afirma.
“As locadoras não compram carros para revender; compram para sua utilização e, por necessidade de mercado e desgaste, têm que fazer a substituição do veículos. Se você entrega um carro um pouco mais velho para o consumidor, ele dá uma volta no quarteirão e volta pra pedir outro”, diz Miguel.
Sobre a questão dos descontos oferecidos pelas montadoras, Miguel diz que se trata de uma condição comercial por conta do volume de compras diretas. O dirigente diz não acreditar na aprovação do projeto. “É uma forma de o Estado arrecadar mais, mas que juridicamente não vejo muita possibilidade [de acontecer]”, diz.O presidente da Abla também afirma que as concessionárias têm o benefício de créditos tributários referentes ao ICMS cobrado, o que minimizaria a vantagem atribuída às locadoras.
Uma emenda ao projeto foi apresentada pelo deputado Herculano Passos (MDB-SP). Propõe reduzir de 24 para 12 meses o prazo para a revenda de veículos e estabelece que, caso a operação ocorra num prazo inferior a um ano, seja cobrado ICMS sobre o preço divulgado publicamente pela montadora, acrescido de multa de 75% do valor do imposto.
A emenda ao projeto de lei também vai na linha do que está previsto em acordo de autorregulamentação estabelecido em 2015 entre a associação que representa os fabricantes, a Anfavea, e a Federação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Fenabrave), que representa os concessionários, com apoio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). “É uma questão de equilíbrio de condições”, diz um executivo que não quis ter o nome revelado.
A Fenabrave não se pronunciou sobre o tema. Em algumas ocasiões, a entidade queixou-se do aumento da participação da venda direta. Nos bastidores, muitos concessionários reclamam de “concorrência desleal” das locadoras.
No centro dessa disputa está a operação de venda de veículos seminovos das três maiores empresas do setor - Localiza, Movida e Unidas. A venda de seminovos tem peso importante na geração de receita desses grupos. No segundo trimestre, a atividade representou 58%, 65% e 55% para Localiza, Movida e Unidas, respectivamente. Miguel argumenta que o valor de um carro é bem mais alto que o de uma diária de locação, por isso o maior peso.
Segundo dados da Abla, as locadoras venderam 230 mil veículos seminovos no ano passado. Mais da metade dessa frota foi comprada por lojas multimarcas e concessionárias. O restante foi comercializado nas lojas das próprias locadoras. A compra das locadoras diretamente das montadoras chegou a 412 mil unidades em 2018.
Entre abril e junho, a margem Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) da venda de carros foi de 3,5% na Localiza, negativa em 1,8% na Movida e de 1,6% na Unidas. Essa mesma margem fica acima de 40% nas operações de locação das companhias.
O deputado Alexis Fonteyne (Novo-SP) foi designado relator do projeto, mas desistiu da função pela proximidade com Salim Mattar, secretário de privatizações do governo Bolsonaro e fundador da Localiza. O novo relator, o deputado Jesus Sérgio (PDT-AC), disse em nota enviada ao Valor que ainda não proferiu seu relatório porque pretende ouvir todas as partes envolvidas por se tratar de um tema que abrange diversos setores da economia. “Vale ressaltar que a finalidade do deputado Jesus Sérgio é contribuir para o aperfeiçoamento da legislação, coibindo o uso indevido de benefícios, mas ao mesmo tempo sem prejudicar o setor produtivo”, diz a nota.
Fonte: Valor Econômico